Planeta dos Macacos: A Guerra
Dirigido por Matt Reeves. Roteiro de Matt Reeves e Mark Bomback. Com: Andy Serkis, Woody Harrelson, Karin Konoval,
Steve Zahn, Amiah Miller, Terry Notary, Michael Adamthwaite, Toby
Kebbell, Gabriel Chavarria, Judy Greer, Ty Olsson, Sara Canning, Devyn Dalton,
Aleks Paunovic.
O gorila estende o braço e, num movimento lento e cuidadoso, arranca a
flor rosa da árvore que se projeta no meio da neve, colocando-a com delicadeza
atrás da orelha esquerda da garotinha à sua frente, que sorri feliz. Situada no
meio de um filme que traz A Guerra como subtítulo, esta cena é
um resumo perfeito das qualidades do mais recente capítulo da saga Planeta
dos Macacos, uma obra que constrói sua narrativa com calma e segurança,
preferindo se concentrar mais em seus personagens do que em explosivas sequências
de ação.
Novamente dirigido por Matt Reeves a partir de um roteiro escrito por
este ao lado de Mark Bomback, A Guerra completa a trajetória
do chimpanzé Caesar (Serkis), que conhecemos ainda filhote em A Origem e seguimos em O Confronto enquanto se
transformava no líder dos primatas que, alterados por um vírus, tornavam-se
cada vez mais inteligentes enquanto os humanos que antes os dominavam eram
dizimados pela epidemia. Determinado a conduzir seus seguidores até uma terra
distante na qual estarão protegidos dos ataques do exército comandado pelo
Coronel (Harrelson), Caesar sofre uma perda que o leva a ser tomado pelo mesmo
ódio que consumiu seu antigo amigo Koba (Kebbell) e que agora o impele
justamente a ir ao encontro do temido militar, sendo acompanhado na jornada
pelo bondoso orangotango Maurice (Konoval), pelos chimpanzés Rocket (Notary) e
“Macaco Mau” (Zahn), pelo gorila Luca (Adamthwaite) e pela menina Nova
(Miller).
Diferindo dos dois capítulos anteriores ao não dividir sua ação entre
núcleos dominados por humanos e macacos, A Guerra investe
praticamente toda a projeção na relação entre Caesar e seus companheiros – e,
assim, é preciso admirar a inteligência da estratégia de Woody Harrelson, que,
sabendo que conta com um tempo limitado de tela, compõe seu Coronel como uma
figura obviamente inspirada no Kurtz vivido por Marlon Brando em Apocalypse
Now, evocando de forma econômica uma série de símbolos e características, o
que não o impede de trazer também seus próprios toques – e um elemento trágico
- ao personagem. Dito isso, assim como ocorria antes, mais uma vez são os
macacos que se estabelecem como as figuras mais complexas e fascinantes da
narrativa: Maurice, por exemplo, comove com seus modos e olhar gentis, ao passo
que “Macaco Mau” surge como uma criatura expressiva que, mesmo atuando
principalmente como alívio cômico, ganha a oportunidade de revelar um lado mais
dramático com o passar do tempo. Além disso, o roteiro encontra espaço para
instantes nos quais os demais integrantes do grupo possam se destacar,
incluindo aquele que descrevi inicialmente.
Contudo, esta nova trilogia é, em essência, a história de Caesar – e
graças à tecnologia usada para criá-lo, Andy Serkis tem a inigualável
oportunidade de interpretar um personagem em todos os pontos de sua existência,
do nascimento à velhice. Exibindo pelos tomados pelo grisalho
e uma postura na qual a autoridade conquistada se alterna com uma clara
exaustão, Caesar é um protagonista fascinante e multidimensional, sendo capaz
de condenar atos de ódio ao mesmo tempo em que não consegue evitar se entregar
a eles. Com uma dicção pausada que Serkis emprega para sugerir a dificuldade de
um ser que aprendeu a falar, mas não se sente totalmente confortável em se
expressar verbalmente, o chimpanzé é um herói trágico que inspira nossa
admiração e nossa pena, que nos convence de sua força sem que ignoremos sua
vulnerabilidade e que nos leva a torcer por sua felicidade, mesmo que saibamos
que esta é impossível.
Dito isso, ao ler o parágrafo acima você pode ter percebido que tratei a
performance de Serkis e a natureza de Caesar como se estivéssemos falando de um
ator e de um personagem convencionais – quando, de fato, o que temos é uma
criação que, em última análise, é levada à tela através dos uns e dos zeros do
digital. Esta, por sinal, é a virtude mais impressionante de A Guerra:
durante a maior parte do tempo, esquecemos completamente de que aqueles
primatas não são reais, um efeito que A Origem muitas vezes falhava em
alcançar. Com o avanço da tecnologia, porém, o diretor Matt Reeves pode incluir
closes fechadíssimos sem que a fantasia seja destruída, já que a textura da
pele, as sombras e os menores tiques jamais deixam de ser absolutamente
convincentes, mesmo quando surgem sob a chuva, o vento ou a neve. Além disso, a performance
captureleva para o filme cada gesto ou desvio de olhar dos atores – e
apenas a expressão simultânea de raiva e desprezo no olhar de Caesar ao
encontrar um orangotango traidor já deveria ser o bastante para render a Serkis
indicações por sua atuação.
Da mesma forma, eu não me surpreenderei caso o experiente diretor de
fotografia Michael Seresin venha a ser reconhecido por seu excepcional trabalho
em A Guerra, que, com sua paleta de cores vivas, é o capítulo esteticamente
mais admirável da trilogia. Refletindo a integração harmoniosa dos macacos com
a natureza, Seresin usa tons fortes, saturados, ao enfocar os ambientes
ocupados por estes, contrapondo-os ao cinza sem vida e sufocante do “quartel”
chefiado pelo Coronel e os campos de trabalho criados pelo militar.
Ocasionalmente remetendo a filmes de guerra – especialmente aqueles situados no
Vietnã -, A Guerratransforma a selva em um espaço ameaçador e
claustrofóbico sempre que observada a partir do ponto de vista dos humanos,
retratando-a como um lugar mais agradável ao se concentrar no grupo de Caesar
(e o mesmo ocorre com outras locações, como podemos notar no lindo plano em uma
praia no qual vemos o herói e seus companheiros cavalgando em contraluz).
Rico em subtextos com implicações políticas e sociais – algo que
observei também em seus antecessores -, A Guerra não tenta ser
particularmente sutil em seus comentários: em certo momento, por exemplo, ao
comentar o esforço do Coronel para construir uma barreira em torno do quartel,
alguém faz uma referência clara ao governo Trump ao afirmar “Esse muro é uma loucura!” e, de modo similar, o tratamento
dispensado aos primatas que trabalham para os humanos funciona como uma clara
alegoria das condições nas quais minorias étnicas vivem em boa parte do mundo.
Flertando também com o subgênero “filmes de prisão”, o diretor Matt
Reeves demonstra uma coragem formidável ao resistir ao caminho natural de um
capítulo final de uma trilogia como esta e mergulhar seus personagens em
sequências de ação contínua; em vez disso, sua abordagem vai constantemente na
contramão: ao retratar certo personagem sendo morto, por exemplo, o cineasta
usa um lento zoom na direção das sombras vistas através da lona de uma tenda,
trazendo o som desta estalando sob o vento como um acompanhamento triste do que
está ocorrendo fora de campo. Aliás, o design sonoro de A
Guerra é fabuloso e, como os demais elementos narrativos,
surpreendente ao investir com frequência no silêncio – uma lógica que o
compositor Michael Giacchino segue em sua magnífica trilha (uma das melhores de
sua carreira) e que substitui a grandiosidade pelo intimismo e a tensão pela
melancolia.
Tratando cada cena como uma oportunidade de desenvolver seus
personagens, Planeta dos Macacos: A Guerra é um filme com
ritmo quase contemplativo e que explora suas pausas com sensibilidade. No
processo, planta o espectador firmemente ao lado dos primatas e converte a
humanidade não como algo a ser salvo, mas como uma ameaça cujo extermínio
merece apenas celebração.
Considerando o estado do Brasil e do planeta em 2017, devo dizer que
esta não é uma mensagem das mais absurdas.
09 de Agosto de 2017
(Os humanos podem ter dificuldade para evitar sua extinção na série
Planeta dos Macacos, mas você certamente pode evitar a do Cinema em Cena na
vida real. Se você curte as críticas que lê aqui, é importante que
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Assista também ao videocast - sem spoilers - sobre o filme:
Sobre o autor da crítica:
Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasile-
iro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site
de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em
periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante
e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.